Todos os caminhos levam a Roma
- Postado por Alex Augusto Marcelo
- Categorias Latim
- Data 5 de janeiro de 2023
- Comentários 5 comentários
Omnēs viae dūcunt Rōmam. Todos os caminhos levam a Roma.
Quem nunca ouviu esta expressão, que traduz tão bem o fator determinante para o êxito do maior império de todos os tempos, permitindo não somente o transporte de mercadorias e pessoas, mas sobretudo o intercâmbio de informações e ideias? As estradas foram, sem dúvida, o principal instrumento de disseminação da civilização romana.
Diferentemente dos gregos, que, pelas desvantagens de seu território, chegaram aonde chegaram graças ao domínio do mar, os romanos eram excelentes construtores de vias: os mais de cem mil quilômetros de caminhos públicos no auge do império, muitos dos quais se encontram em excelentes condições até os dias atuais, comprovam esse fato. Em determinado momento, passou a haver em Roma até mesmo magistrados que se ocupavam especificamente das estradas — os chamados cūrātōres viārum (“zeladores de estradas”).
A mais célebre de todas as estradas romanas — e também uma das mais antigas — é a via Appia (“Via Ápia”), cuja construção, atribuída ao censor Ápio Cláudio Cego — daí o nome —, se deu no ano 312 a.C. Apelidada pelo poeta Estácio de rēgīna viārum (“rainha das estradas”), a Via Ápia, de traçado bastante retilíneo (característica marcante de praticamente todas as vias romanas), conduzia, inicialmente, de Roma a Cápua, mas depois foi estendida até Bríndisi. Foi ao longo da Via Ápia que se deu a crucificação dos rebeldes comandados por Espártaco, cujos corpos foram expostos, para fins de exemplo, no trecho de Roma até Pompeia.
A retidão das estradas romanas, que evidentemente otimizava as distâncias, não se conseguia sem custo: pontes, viadutos e túneis eram estruturas recorrentes, além dos trabalhos de drenagem e terraplenagem. Não é à toa que os responsáveis pelas obras faziam questão de imortalizar seus feitos batizando as vias com seus próprios nomes. Todavia, nem todas as estradas levam o nome de quem as construiu: muitas vezes, a denominação faz referência a uma cidade (via Collatīna), a uma província (via Latīna) ou a um evento (via Triumphālis), entre outras possibilidades.
A principal desvantagem das vias romanas, que provavelmente contribuiu para que elas fossem deixando de ser utilizadas, é sua declividade excessiva, que podia beirar os 20%. Isso representa um desnível de 10 m em um trecho de estrada de 50 m de comprimento. Imagine descer uma ladeira dessas em uma carroça!
O poeta Estácio, que viveu na época do imperador Domiciano, nos fornece uma descrição bastante detalhada da construção de uma via romana. Celebrar um assunto tão técnico em um texto poético é prova cabal de que os romanos se orgulhavam muito de seu know-how, que garantiu a Roma o estatuto de capital do mundo.
Vejamos, resumidamente, como se dava a construção. Uma vez estabelecido o traçado, cavava-se um fosso até atingir uma camada de solo firme (hoje chamada subleito), sobre a qual se depositava uma camada de rochas de grande diâmetro, assentadas sobre cimento ou ligadas por argila (na engenharia moderna, costumamos chamá-la de reforço do subleito). Os romanos a denominavam de statūmen. Quando o subleito apresentava uma capacidade de suporte suficientemente elevada, essa etapa não era necessária. Sobre o statūmen, que podia alcançar até meio metro de espessura, espalhava-se uma camada de concreto de areia e cascalho fortemente compactada: trata-se do rūdus, que, uma vez acabado, tinha cerca de 25 cm de espessura. Acima do rūdus, estendia-se uma camada de concreto de cascalho fino ou areia grossa batida de até 45 cm de espessura, constituindo o que os romanos chamavam de nucleus. Por fim, depositavam-se, sobre o nucleus, rochas planas e lisas, formando o dito summum dorsum da via, camada que podia chegar aos 30 cm de espessura.
Estrutura de uma via romana: (1) statūmen; (2) rūdus; (3) nucleus; (4) summum dorsum. Fonte: Orbis Pictus Latinus, Hermann Koller, 2008
Nas grandes estradas, o material do summum dorsum era o sílice, rocha dura e séctil, de cujas faíscas se produz o fogo. Esse uso é atestado pelo historiador Tito Lívio (41, 27, 7): clīvum Capitōlīnum silice sternendum cūrāvērunt (“mandaram pavimentar o Clivo Capitolino com sílice”); no entanto, o tipo de rocha variava bastante segundo a localidade, pois os romanos buscavam aproveitar os materiais disponíveis na região do empreendimento.
A estrada já concluída recebia o nome de via strāta ou via mūnīta. Aliás, é justamente à primeira denominação que o vocábulo português “estrada” deve sua origem. Strātus, -a, -um é o particípio perfeito de sternere, verbo latino que significa “estender” — não eram as camadas estendidas umas sobre as outras? Também é daí que derivam o alemão Strasse, o inglês street e o italiano strada, por exemplo.
As vias principais tinham cerca de 4,5 m de largura, permitindo a passagem de duas carroças em direções opostas. Muitas vezes, no entanto, era preciso manobrar para ceder passagem a outro veículo, já que algumas estradas não ultrapassavam os 2 m de largura. Em alguns lugares, como nas proximidades de Roma, as vias eram dotadas de marginēs (“calçadas”).
Os cruzamentos entre as vias recebem nomes específicos. Quando uma estrada corta a outra, dividindo a área em quatro regiões, tem-se um quadrivium; quando três estradas se juntam, tem-se um trivium. Os trivia e os quadrivia serviam de locais para rituais antigos, como o sacrifício de animais e a colocação de coroas. Em outro contexto, trivium se refere às três primeiras artes liberais — a gramática, a retórica e a dialética —, enquanto quadrivium diz respeito às quatro mais difíceis — a aritmética, a geometria, a astronomia e a música.
Uma rua em Pompeia. Fonte: Stylus
A Porta Marina, entrada principal de Pompeia. Fonte: Stylus
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Valē!
Bacharel em Linguística e em Engenharia Civil pela Universidade Estadual de Campinas, de onde também recebeu o Certificado em Línguas Clássicas, o professor Alex Augusto Marcelo atua na divulgação e no ensino das línguas latina e grega há mais de dez anos. Além de ter criado a série Latim para Principiantes, no YouTube, que conta atualmente com mais de 35 mil inscritos, Alex é autor de diversos cursos em plataformas online, como a Udemy e a Hotmart, onde conquistou até o momento mais de 5 mil alunos. Com um conhecimento profundo de sua língua materna, o português, o professor também trabalha com a revisão, preparação e tradução de textos envolvendo as línguas portuguesa, inglesa, espanhola, catalã, latina e grega.
Excelente artigo. O texto mescla, magistralmente, aspectos históricos, culturais, linguísticos e tecnológicos. Parabéns ao preclaro, sensível e talentosíssimo autor, latinista de escol e profundo conhecedor da cultura clássica.
“Prima urbes inter, divum domus, aurea Roma” (Ausônio, ORDO URBIUM NOBILIUM, I)
Rafael Mendes
Fiquei curioso… se ficava uma ribanceira, porque não contornavam…
Ótimo artigo! A infraestrutura do império romano é realmente fascinante. Hoje em dia nossas estradas mal duram 6 meses. 😵💫
Excelente artigo, magister!
Parabéns pela publicização deste texto. Um primor de objetividade, clareza e beleza de estilo literário, à altura do fato histórico relevante e de grande significado para a Humanidade. Prof. Joaquim Xavier